12/10/11

Um cê a mais

Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.

Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.

As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar. 
Manuel Halpern

Quando eu for grande também vou escrever textos assim. 

4 comentários:

DCalado disse...

Isto agora vai custar um bocadinho a apanhar o jeito eheheh

Bjs.

Cris disse...

Depois de pormos a mão na massa acho que a coisa vai lá... mas há muitas palavras que continuam a fazer-me muita confusão. Paciência!

beijos

Kok disse...

Continuo sem perceber a utilidade deste acordo.
E nem me dou ao trabalho de escrever diferente de como sempre fiz.
Até para continuar a cometer os mesmo erros (que já são demais).
Nem é propriamente por birra; até posso dizer que é mais por preguiça, por desinteresse, por...
E como também não lhe reconheço nenhum tipo de "valor acrescentado" para a exaltação da língua portuguesa...

Bêjos e B.F.Semana!!!

Cris disse...

Eu estive em negação em relação ao acordo ortográfico o máximo que me foi permitido... agora, sem alternativa, vou tentando coexistir com ele.

beijos