12/01/09

30.7.05

(Continuação 1/2)
Cá fica o primeiro texto prometido... para ler ou reler (dependendo de quem por aqui passe!).

Sonhei contigo nessa noite em que te reconheci bailarina, qual graciosa executante do Bolshoi, como que suspensa em intermináveis rodopios. Postura erecta, queixo delicadamente erguido, compensando generosamente os movimentos de um corpo bem proporcionado, sólido. Katrina te nomeei, guiado talvez por um ancestral instinto predador. Que não, suspeitei, não teria essa sorte e havias de te chamar outra coisa qualquer.
Kathara, A Pura, soube depois. Alguém me sussurrou ao ouvido. Talvez o tivesse descoberto afinal, pelos meus próprios meios, com o decorrer dos tempos e o tranquilo mar que nos coube navegar. Porto de abrigo terno e acolhedor, defensor do mar revoltoso e áspero das vidas. Vidas amarguradas, sobreviventes.Mas assim ficou sentenciado. Tu Kathara, eu Alexein, outrora «defensor da humanidade».
Nos dias que se seguiram, colocava-me estrategicamente à porta do «Oficina», jeans arregaçados, sandálias de couro e t-shirt às riscas, tingidas de um verde meio consumido pelo tempo. Fingia que dava atenção aos que me rodeavam e às conversas rotineiras, remotamente perceptíveis no meio de tão intenso desassossego que insistia em me abrasar as vísceras, consumir por dentro. Fantasiava ansiosamente com a tua presença, se me olharias, como algo se escapulisse da tua mão e eu segurasse, ajoelhando-me se necessário. Suspirava para que reparasses enfim, nesta triste carcaça, e que a desejasses um dia.
Apesar da má imagem do primeiro dia na Universidade (uns anos antes) vim a saber que até não desgostavas da peça, tez morena acentuada pela barba negra e bolsa ao tiracolo cheia de nadas. Essa figura que, esmagada contra a parede branca te seguia irritantemente com o olhar agudo de rapina esfrangalhada. Eu, deixava-me ir, desconcertado pela suave brisa deixada pelo carocha que deslizava Rua da Moeda abaixo, fitando nos olhos esse preto de língua de fora que ia deixando orientadores trilhos de saliva. O meu coração dilatava e contraía ao ritmo dos solavancos do «bogas», até este se perder de vista. Até depois de o perder de vista. E abandonava-me a pensar que belo amigo para a minha «JEnny» de 1985. Que par! HElio e JEnny. Além disso, «o cão precisava de um disciplinador masculino, que raio»...
Por essa altura, as rotineiras conversas já haviam há muito dado lugar ao silêncio. Aquele silêncio observador de aprovação, pelo ressurgir de um brilho nos olhos.
As coisas começaram a ficar sérias. O Vivi estava do meu lado, que era o nosso. Seria o padrinho, isso era ponto assente! E numa dessas noites, ficámos plantados no «Kalmaria», eu de um lado, tu do outro, a esgrimir trémulas iniciativas, povoados por receios infundados e absurdos, numa troca de olhares alheada de tudo o que nos rodeava. Impacientaste-te mas encheste-te de força. Que «o tipo não se decide» murmuraste entre dentes cerrados para os teus botões com nomes. Acabámos a falar de patetices, embriagados de impertinente emoção, vozes embargadas de vontade de viver, entre sorrisos tolos e desorientados choques de mãos. Ocasionais, ingénuos, militantes decerto.
A semana seguinte, passamo-la sentados nos poiais da Rua da Moeda, falando de tudo menos de política, que te aborrecia. Agora já não. Que até já votavas. E davas-me força para quem sabe, um dia vir a ser um deles e mudar o mundo, como impunham os nossos valores, as nossas concepções e convicções.Eras independente, serena e pura. Foi assim que te vi, Kathara. E assim permaneces, angelicalmente a meu lado.
Tudo se precipitou naquela noite de 14 de Julho quando alguém teve a oportuna ideia de ir para a barragem do Divor. Esbocei um sorriso. Preparei antes uma pequena bolsa cheia de pedras e conchas que havia recolhido criteriosamente nesse dia, na praia, a pensar em ti. Sabia que gostavas de coisas simples. Percebi-o nos teus olhos. Neles penetrei e fechei-ta na mão. Ainda a conservas. Não conheço melhor guardião de memórias e não cessas de me surpreender.
Mais tarde, enquanto chapinhava na água morna matizada pelo luar com o padrinho exultante, senti que tinha ali amiga para toda a vida. Já me tinham dito que seria assim. Não fiz ouvidos de mercador. Detive-me por momentos com a água pela boca e espiei-te atentamente. Organizaras com as «bolinhas», uma recolha de paus e folhas para nos preparar uma fogueira. Não podíamos arrefecer, correndo o risco de nos constiparmos. E afinal, eu eras tu, já o sentias nessa altura.
Por falar nisso, contigo aprendi também que com a saúde não se brinca. Passei a estar «sempre alerta» e até já levo protector solar para a praia e evito os molhos (não todos como sabes). Passei a comer peixinho bom, as tuas couves e a adorar as migas da tua mãe. A tua mãe, o teu pai, a tua família, que é a minha e a minha é a tua. Como te amam e como os amo. «Tia Fiuza, o Álexandre?», «Canina, Canina! Comi, Pedro», «Veja lá Catarina se está bom de sal», «Cati, quando voltas para cima?».No retorno dos primeiros raios de luz que alumiaram a aurora desse benevolente 15 de Julho, apeei-me do carro no mesmo sitio que tu. Ficaste estarrecida mas não desarmaste. Convidaste-me a entrar e depois de um copo de água nervosamente equilibrado nas palmas das minhas mãos, precipitamo-nos bruscamente e encontramo-nos no mais belo e emocionante abraço. Singelo, delicado, irrepetível. Só isso. Chorei de alegria. Tu sentada, eu ajoelhado. Com ele selámos as nossas vidas, eu fiquei tu e tu ficaste eu. Demos as mãos para não mais as largar.
Ainda hoje me arrepio quando me envolves no teu regaço após um demorado abraço. Esse abraço abençoado pelos homens e pelos deuses que já o foram.Crescemos juntos! Formamos uma bela equipa, já o sentíamos. Não houve quem no-lo não confessasse. Até naquela carta que recebi e que lemos em conjunto, proveniente dos frios do Minho. É assombroso, como por vezes somos confrontados com as coisas mais inesperadas mesmo dos mais ignotos. Enchia-nos de orgulho e de vontade em continuarmos assim, tu e eu, nós. Simples, harmoniosos. Eu, o menino timorato e tu, a menina insegura embora determinada. Amigos e amantes. Conquistadores do tempo e dos afectos, do mar e dos céus.
Crescemos cúmplices! Em equilíbrio, harmonia, conhecimento, cimento. Cimento robusto, consistente, unificador, quotidiano, encorajador. Sem trocas, pagas ou invejas. Sempre em conjunto enfrentámos a vida, os trabalhos, as contrariedades, e até os fiscais ferroviários em Paris, quando fomos apanhados sem bilhete. A experimentar a vida, exaltando-a na sua magnitude.
Cimento que se solidificou em circunstâncias tão especiais quanto quotidianas. Café sem açúcar, fruta rija, arroz basmati, rucola e pinhão, as brincadeiras no supermercado entre expositores e o olhar repreensivo dos demais, as longas caminhadas com o nosso querido Mustapha, a união acostumada das mãos unidas pelos dedos entrelaçados, descodificadores de mensagens de conforto, compromisso e alegria. Alegria de viver. O passo ajustado, a respiração sincronizada, a síntese simbiótica de informação recolhida para costurar no pensamento. Pensamento em ti, em nós, nos outros, no futuro.
A notícia daquele envelope que me enviaste para a Bélgica. Céus, estive duas horas a chatear ininterruptamente o cinzento funcionário para que vasculhasse entre as encomendas por classificar e me entregasse um dia antes do procedimento normal, aquilo que me destinaras. Lá me desenrasquei e quando abri o pacote, corri e saltei na Grand Place como um louco feliz, segurando junto ao peito um ramo de flores silvestres que exalavam maravilhosamente a milhares de km de distância, aquele intenso aroma exótico dos campos do Alentejo em flor. Esses campos que se habituaram à nossa presença. Esses campos que amámos e tomámos por morada.
Tudo tinha um significado especial. Para ti era tão simples, tão natural como respirar. Conseguias ler nas entrelinhas, conhecias o meu pensamento, as minhas expressões, os meus anseios e os medos de uma criança assustada. O berlinde, os carrinhos, as flores, o caderno que me fizeste, o chapéu-de-chuva com a constelação de Orion por ti desenhada, para que me não perdesse nos caminhos da vida. Eu tentava acompanhar-te, fazer-te feliz e reconquistar aquele abraço imedível e acolhedor.
Como daquela vez em Bruxelas, quando viste numa montra aquela magnifica peça lilás de tapeçaria, dourada nas extremidades. «Quanto custará?», perguntaste, ao que prontamente redargui, receando pelas minhas parcas economias: «não tem preço, estás a ver?» E não tinha. Como poderia ter? Por isso te envolvi nela quando regressei a Portugal, contemplando o teu doce sorriso.
Nunca tive o teu jeito, mas esforçava-me bastante, mesmo quando apenas apreciavas o gesto da minha culinária hesitante mas evolutiva. Só para receber esse sorriso, esse caloroso abraço que me aproximava da vida e um do outro.
Ao teu lado, aprendi, cresci, lutei, descobri. Nunca me deixaste desviar das minhas convicções que eram as nossas. Foste farol, guia, estrela polar, vento norte, sol, bússola, eu sei lá. Aceitámos as nossas imperfeições e riamos delas. Fomos nós, tal como nos conhecíamos e nos desejávamos. Ardentes, intensos, revigorantes, sublimes, amigos.
A ternura, a cúmplice troca de olhares, o nosso amor, vivido com intensidade e alegria. O ardor de paixões vividas e revividas em homenagem àquele abraço primordial. Tal qual o primeiro dia. Contigo proclamei a vida e o amor.
Os cheiros, os corpos, as lágrimas, os sorrisos. Ah, esse teu sorriso resplandecente, generoso, maravilhoso como os campos floridos a perder de vista na primavera. O aroma da caruma, do pinhal e da terra virgem molhada, as eiras, os grous, as rapinas, os pirilampos (foi contigo a única vez que os vi, recordas?), as estrelas, as pedras, os antúrios, as carícias, o suave toque dos teus lábios contra os meus, seguido de uma ensandecida fusão de sentimentos extasiantes, arrebatadores.
Eu, complicado, impulsivo, indignado, racional. Tu, serena, simples, terna, sensível. Tu, a amora, eu, o anjo. O «produto» seria clarividência, sensatez, ânimo, determinação e muito, muito amor. Tu, os nomes, eu, as caras. Tu dizias, Samuel, Simão e Camila. Eu, que sim! Que seriam lindos, magníficos e todos diferentes uns dos outros. Mas com os olhos, pernas e pele do pai, boca, barriga e ombros da mãe. A ternura da mãe e a impetuosidade do pai. O coração de ambos. Assim tinha ficado assente.
De ti, amor, guardo para sempre a candura da tua expressão nesse perpétuo abraço enroscado, que me dava tudo o que a vida me fez sonhar.
Alguns dos que te amam e que para sempre testemunharão o legado que nos deixaste, sem jamais olvidar como nos tocaste no coração.

(...)
Samuel, Simão, Camila e eu.
Fim

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